Música, Música

Humano valor

14 de janeiro de 2024

Assisti recentemente o filme Worth, Netflix, baseado em fatos acontecidos, sobre um advogado que tem sua firma contratada para criar um fundo de assistência financeira às famílias das vítimas dos atentados de 11 de setembro, em Washington e Nova Iorque. A premissa para o ressarcimento dos familiares seria o quanto valeria a vida da vítima em questão; a vida de um executivo valeria mais do que a de um faxineiro? A de um bombeiro menos do que a de um banqueiro? E o filme, tenso do início ao fim, vai se desenrolando na tentativa impossível de quantificar uma existência, e se depara com as situações particulares de cada família, formadas, enfim, por seres humanos e suas necessidades, aspirações, planos, contradições.

 Há um momento no filme, uma cena que dura bem pouco, aliás, que pra mim expressa essa impossibilidade. O advogado em questão, interpretado por Michael Keaton, é convidado a assistir uma performance musical* que tem como tema a perda. 

  A performance é como uma flechada; de uma beleza certeira e estonteante. Depois desta cena o protagonista entende que a premissa com que iniciou o processo de criação do fundo de assistência estava profundamente equivocada. A partir daí sua relação com as famílias se modifica completamente. 

 É a Arte, sempre Ela, expondo as feridas inerentes à experiência humana da maneira mais bela e tocante. 

 A composição se assemelha a uma ária operística. E tem a repetição de um mesmo intervalo (uma sexta Maior), como efeito de uma dolorosa verdade que não pode ser esquecida nem um por um segundo. Começa com uma solista (mezzosoprano ou contralto) entoando os intervalos enquanto elenca suas perdas; …”I lost a sock, I lost um guarda-chuva, um dente, meu pai”… e, então, vozes masculinas (barítonos) juntam-se a esta voz, cantando os nomes dos objetos perdidos. Entra, então, uma linha melódica em modo menor tocada por um órgão que se contrapõe ao ostinato desse intervalo de sexta Maior. Enquanto isso, assisitimos a performance de bailarinos reforçando a ideia de desorientação.

 A mim esta linha melódica pareceu uma dança de partículas de areia e poeira levantadas por uma bomba. 

 Restou aos seres humanos desorientados, envoltos por essas partículas, a percepção da perda, retratada pelos tais ostinatos.

 Uma beleza trágica! 

  • I Lost a Sock · Bang on a Can · Concerto Köln · RIAS Kammerchor, do compositor David Lang.  
  • Leslie Dodge & Toby Lewellen, coreografia.

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